quarta-feira, 17 de abril de 2019

Os novos Velhos do Restelo

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Todos ficámos de coração apertado ao ver um monumento com séculos de História ser devorado pelo fogo. A queda daquele pináculo foi um murro no estômago para toda a Europa e, claro, sobretudo para França. Todos sabemos que o que ali estava tinha um valor incomensurável e que cada centímetro ardido era uma perda inestimável. Acho que nunca tinha assistido a uma reação de choque tão profundo perante a destruição de um monumento (e recordem-se que, infelizmente, nos últimos anos vimos muitos serem deliberadamente arrasados por fanáticos religiosos). Creio que entrou também em campo a questão da proximidade e do simbolismo. Mesmo sem termos visitado a Catedral de Notre Dame, ela estava próxima, aqui no nosso continente, e era um símbolo do seu país. Muitos recordaram o célebre corcunda, fosse o de Victor Hugo ou o da versão da Disney: todos ficámos suspensos das notícias que chegavam e reduzidos à nossa insignificância perante um fogo que devorou séculos de História, toneladas de cultura.

O Presidente Macron fez nessa mesma noite uma comunicação ao país apelando à união de esforços para a reconstrução da catedral. Salvaguardada a estrutura, torna-se possível falar em reconstrução. Imediatamente alguns milionários doaram avultadas quantias para que a catedral volte a erguer-se. E, quando as notícias dessas doações chegaram à internet, ergueram-se também os Velhos do Restelo que por lá andam adormecidos (mas só até à oportunidade seguinte para reclamar com o mundo).

Os Velhos do Restelo do Facebook (a única rede social que sigo) começaram a fazer circular textos sobre a pouca vergonha que é arder um monumento e aparecerem logo milhões para a sua reconstrução, havendo fome em África sem que alguém se preocupe com isso. Alguns apressaram-se, inclusivamente, a justapor duas imagens: em cima a catedral em chamas e em baixo umas cinco crianças em situação de fome extrema. Nem preciso de falar na quantidade de likes que estas publicações que vi conseguiram em pouco tempo. Acho que podem imaginar.

Também encontrei comentários às notícias sobre as doações que podiam ter sido proferidos pelo Velho do Restelo camoniano. De repente, estes combatentes da fome no mundo saíram dos seus casulos e revelaram indignação por, aparentemente, se ajudar mais depressa a reerguer paredes antigas do que a matar a fome a crianças que necessitam de auxílio imediato. Mais likes. E, como a estupidez funciona por osmose, mais comentários do mesmo género por ali fora.

Claro que todos gostaríamos que o mundo não tivesse problemas. Claro que fome, guerra e pobreza são coisas que gostaríamos de eliminar, ninguém põe isso em causa. E acredito que diariamente haja quem tente minimizar a dor dos que sofrem e quem tente resolver os problemas que conduziram aos conflitos ou à fome. Porém, não podemos esperar que todo o dinheiro que existe seja canalizado para esses problemas. Reerguer uma catedral que faz parte da nossa História, que é um elemento cultural da maior importância não significa que não nos preocupamos com outros problemas e que nada fazemos para acabar com eles. É como quando alguém ajuda uma instituição de animais e vêm logo estes indignados de serviço dizer que é uma vergonha estar a dar dinheiro a cães e gatos com tantas crianças a passarem mal. São incapazes de perceber que é possível olhar para os dois lados, que é possível tentar resolver diferentes problemas. E são ainda mais quadrados para compreender que, infelizmente, alguns problemas não se resolvem simplesmente mandando dinheiro para os locais onde existe fome. Por vezes, há questões políticas na base dessas dificuldades que impedem inclusivamente que façamos mais por aquelas pessoas (basta pensar no que se passa na Venezuela e no que aconteceu à ajuda humanitária que para lá se enviou, impedida de entrar pelo próprio governo). Além disso, são extremamente injustos quando até vemos que as pessoas se mobilizam para ajudar quando a isso são chamadas. 

Estas pessoas também não devem ter noção de que há paredes de pedra («cimento», como um iluminado chegou a dizer) que dizem mais sobre nós do que mil páginas de internet, do que qualquer rede social. Paredes pelas quais se tem afecto e que se desejam de pé, não no meio de cinza e escombros a existir apenas na memória. Estas pessoas encontrarão sempre o que criticar e se calhar até são as mesmas que nem contribuem para recolhas de alimentos porque «há sempre quem se aproveite sem precisar» ou porque «a mim ninguém me ajuda». No fundo, tais criaturas encontrarão sempre motivo para a indignação e espalharão na internet questões que não existem e aspectos que não colidem. Doar dinheiro para reerguer um símbolo de França não exclui que se faça mais por um mundo melhor. E muitos praticam o bem sem querer publicidade sobre isso. Muitos doam sem desejar que isso se saiba. Quantos gostariam de fazer mais e não podem porque as questões políticas não o permitem?

Mas isso já obriga a pensar, a ler, a ver noticiários e os indignados não têm tempo para essas coisas. Eles servem para apontar as injustiças sociais, mesmo que tais acusações sejam, elas próprias, injustas. No fundo, acho que falam para não estarem calados. São estes Velhos do Restelo que geram e embarcam em populismos, que abrem as portas a ideias demagogas, vazias e perigosas. Tudo porque são mal-informados com a mania de que sabem muito; porque são pessoas que não enxergam além do óbvio e que ficam pela rama; porque são incapazes de pensar sobre um assunto e de resistir ao imediatismo das redes sociais, ao gozo bacoco de ter likes e gente a apoiar as suas palavras. São pessoas que vêem uma catedral com centenas de anos a arder e não entendem sequer o que estão a ver. Estes Velhos do Restelo, estes indignados, estas pessoas que sofrem de quixotismo inerte são um perigo. E são, para mim, dignos de dó.

2 comentários:

  1. Tão, tão triste. Soube da notícia ao chegar a casa, cansadíssima,e a desejar a minha cama, fiquei estarrecida ao ver as notícias.
    Um primo meu viu o incêndio da sua janela de casa. Imagina...

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