segunda-feira, 18 de março de 2019

Autobiografia de Agatha Christie - o balanço

Wook.pt - Agatha Christie


Quando um escritor tem uma obra tão vasta e reconhecida como Agatha Christie, é fácil esquecermo-nos de que houve uma vida além da escrita. Ora, a existência desta escritora é riquíssima e dava um (ou muitos) livro(s). 

Nasceu no seio de uma família endinheirada, sendo a filha mais nova e, portanto, ao mesmo tempo, a «bonequinha» e a mais esquecida da família. Os irmãos eram consideravelmente mais velhos do que ela e, por isso, desde cedo Agatha Christie começou a criar mundos de fantasia e a fazer parte deles como forma de brincadeira. Estaria longe de imaginar, nesse tempo da infância, que essas efabulações seriam um excelente treino para o futuro que a esperava. Imaginava amigos que não existiam, histórias com múltiplas personagens e traçava minuciosamente o carácter de cada uma delas. Mais: criava enredos para os diferentes núcleos de figuras inventadas.

Anos mais tarde, viu-se desafiada pela irmã a escrever um romance policial. Aquela sugestão ficou dentro de si e, numa fase em que a necessidade imperou, o primeiro livro viu a luz do dia. Porém, antes disso foram muitas as rejeições. O primeiro contrato que assinou com uma editora era draconiano. Ganharia meia dúzia de tostões. Claro que a editora tentou segurá-la ao perceber que ali estava uma autora promissora, mas Agatha Christie deu outros passos e acabou por lucrar com a escrita, vivendo dela mesmo em tempos difíceis. Note-se que a autora viveu as duas guerras mundiais e em ambas trabalhou em hospitais e farmácias, convivendo de perto com substâncias químicas. Esta aprendizagem foi fundamental para as suas histórias, para os famosos casos de envenenamento que imaginou e para o modo como os descreveu tão bem e de forma tão verosímil.

Este é um livro longo, mas o leitor nem nota que está a ler centenas de páginas. É uma vida tão cheia de aventuras e de momentos extraordinários que a leitura flui, as páginas viram-se e o livro termina com a sensação de que podíamos continuar a lê-lo durante muito mais tempo. Agatha Christie faz nesta Autobiografia o mesmo que nos seus outros livros: é directa, ainda que aqui e ali divague um pouco mais sobre alguns temas. Vai contando os factos que moldaram a sua vida e avançando, de modo a que, no fim, somos capazes de perceber em que medida isto ou aquilo, esta ou aquela pessoa tiveram influência sobre ela para que se tornasse na autora que conhecemos. 

Acho sempre muito interessante ler sobre a infância. É uma fase da vida extraordinariamente importante. É sobretudo nela que aprendemos a viver com os outros, que definimos certos gostos e aversões, que experimentamos coisas pela primeira vez, que começamos a idealizar o futuro... Por isso, aquilo a que somos expostos nesses tempos iniciais tem repercussões futuras. No caso dos escritores, a infância dá muitas vezes o mote para muitas histórias, para personagens. Gosto muito de ler biografias e autobiografias, mas a fase sobre a qual gosto mais de ler é mesmo a infância. Com este livro da Agatha Christie, tal voltou a acontecer. Se toda a sua vida é uma catadupa de acontecimentos interessantes, a verdade e que a infância e aquilo que ela construiu durante esses anos serviu de base para o que veio depois. E o que veio depois é uma aventura. Se algumas das suas ideias sobre o mundo podem parecer-nos ultrapassadas (importa ter em conta que eram comuns na época em que viveu), é, por outro lado, inequívoco o espírito aventureiro que nasceu na meninice e que continuou pela vida fora. A viagem no Expresso do Oriente, as visitas a países tão exóticos e diferentes como o Iraque ou a Síria, a África do Sul ou a Rússia fazem parte do seu espírito eternamente curioso e ávido de experiências novas. A maternidade não a fez parar, pelo contrário: Agatha Christie continuou a viajar, a conhecer diferentes hábitos, culturas e histórias e tudo isso entrou nos seus livros. Quando Poirot vive uma aventura no Expresso do Oriente, fá-lo porque a sua criadora fez essa viagem, conheceu-a bem. Se há policiais cujo enredo decorre no Egipto, é porque Agatha Christie esteve lá, viu, ouviu e sentiu o que por lá se vivia. Se encontramos escavações arqueológicas em alguns dos seus livros, tal deve-se ao facto de ter conhecido de perto essa realidade com o segundo marido. Já para não repetir que conviveu de perto com substâncias químicas que conheceu bem e que figuraram nos seus livros. São célebres os homicídios por envenenamento nos livros de Agatha Christie.

É por tudo isto uma leitura que aconselho. São muitas páginas de uma vida real que daria um romance. O tom alegre, optimista da autora falando da sua vida, mesmo quando refere momentos nada doces, enriquece o livro. E ainda que não concordemos com ela relativamente a algumas maneiras de ver o mundo (como quando fala da dependência das mulheres em relação aos maridos), a verdade é que também esses momentos nos permitem ver como o pensamento mudou e, portanto, acabam por ser interessantes. Falta-me apenas referir que o livro inclui fotografias da autora e de familiares seus e só pecam por serem poucas. Ao ter vivido tanto em tantos locais diferentes, apetecia ter quase uma imagem por episódio aludido, o que seria claramente impossível. Ainda assim, seria interessante ver mais fotografias de Agatha Christie nas viagens que fez, uma fotografia de um texto escrito por ela, por exemplo, com correcções (algo que os leitores costumam gostar de ver). Tirando isso e alguns lapsos gramaticais nesta edição portuguesa, o livro é uma delícia. Se conseguirem, deitem-lhe a mão e dediquem-lhe tempo. Não vão dá-lo como perdido.

1 comentário:

  1. Leio ( e releio)os livros da Agatha Christie desde os doze anos (tenho 50) e não me canso. Claro que já li esse livro (eheheh) e fiquei maravilhada com a vida preenchida que ela teve e também com a sua coragem e determinação (numa época em que as mulheres tinham mais constrangimentos do que atualmente). Continua a ser a minha autora favorita. Sandra L.

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