Terminei na terça-feira a leitura do romance Madrid 1605. Ora vamos lá ao balanço.
Não é preciso olhar com muita atenção para este blogue para perceber-se que tenho um outro blogue no qual vendo os livros que já não quero manter. Pois bem, meus caros, JAMAIS encontrarão este livro no Moinho de Vento - Livros Usados. Eu não gostei dele: eu adorei-o! Foram quase seiscentas páginas emocionantes e que, tendo a sua dose de mistério e aventura, não são absolutamente idiotas como alguns best-sellers em que alguém procura alguma coisa perdida.
Em Madrid 1605 também se procura um objecto. Muito por acaso, o bibliófilo Erasmo encontra num alfarrabista do centro da capital espanhola um manuscrito contendo uma crónica de alguém que se dizia genro de Cervantes. Gonzalo de Córdoba, o cronista, contaria ali a história de um manuscrito que, sabemo-lo nós, a existir teria um valor incalculável: o do Quijote. Pois bem, nessa crónica, Gonzalo revelaria onde teria guardado o autógrafo de uma das mais importantes obras literárias de sempre. Só sobra um problema para Erasmo e para a sua ajudante Pilar: a crónica não está completa. Assim, ambos os protagonistas dão início a uma demanda para encontrar, em primeiro lugar, as restantes páginas escritas por Gonzalo de Córdoba e, finalmente, para encontrar o mais importante manuscrito cervantino. Todavia, se o enredo fosse só este, seria coisa pouca.
O mundo dos livros é bem mais vivo do que aquilo que alguns pensam. Nomeadamente o mundo do livro antigo e do seu coleccionismo. Deste modo, Erasmo não estará sozinho na sua demanda, até porque o estado de euforia em que a crónica o deixa cedo dá nas vistas e provoca a curiosidade de gente muito pouco disposta a perder a oportunidade de deitar a mão a um objecto extraordinariamente valioso como o seria o manuscrito do Quijote se ele existisse...
Erasmo e Pilar viverão, então, uma aventura mirabolante que se passa em corredores de bibliotecas, tendo sempre os livros antigos como pano de fundo. Mas, detalhe importante, a narração do livro ocorre a duas vozes, digamos assim. Ou talvez a três, mas se vos explicar isto, acabo a contar-vos o final e não quero. Porém posso dizer-vos que as duas vozes são as do narrador que conta as peripécias vividas pelo bibliófilo e por Pilar, sua antiga aluna; e a do próprio Gonzalo de Córdoba, que através da sua crónica, deixa para a posteridade a história da criação literária do Quijote. Aliás, o processo de escrita desta obra magistral da literatura espanhola e do mundo é um daqueles segredos que qualquer filólogo gostaria de desvendar. Sabe-se muito pouco sobre como nasceu o Cavaleiro da Triste Figura e gostaríamos muito de perceber o que passa na cabeça de um génio quando escreve algo que perdura ao longo de séculos, mantendo a mesma frescura que tinha no dia em que saiu do prelo.
Em Madrid 1605, além do enredo que é muito envolvente, a escrita é magnífica. Os autores Eloy Cebrián e Francisco Mendonza não caem na esparrela da escrita simplista que geralmente rodeia estes livros contemporâneos em que se procura qualquer coisa que outros também querem e que, de alguma forma, pode mudar o mundo se for encontrada. Pelo contrário, enchem o seu texto de vocábulos ligados ao mundo do livro e partilham com o autor conhecimentos sobre incunábulos, imprensa, mercado bibliográfico, entre outros, que podemos conhecer menos bem. As personagens são bem descritas e só em poucos momentos senti que havia uma ou outra comparação ou imagem que podiam ser menos vulgares. No entanto, o resto está tão bom que estes poucos pormenores superam-se facilmente.
Acredito que este livro diga pouco a quem não conhecer o Quijote. Mas para quem conhece e percebe o seu valor em Espanha e no resto do mundo a história torna-se aliciante. Em algum momento chegamos a acreditar que aquilo só pode ser verdade, que realmente sabemos como Cervantes escreveu a sua obra-prima e que, de facto, o seu manuscrito ainda existe. Mais: os autores fizeram por encaixar pormenores da ficção às dúvidas que ainda hoje existem. Por exemplo: desconfiam os cervantistas que originalmente o Quijote fosse uma novela curta, digna de figurar no volume das Novelas Exemplares. Isto porque, na obra, os primeiros capítulos parecem formar um texto com alguma unidade, que poderia existir só por si. Ora, os autores de Madrid 1605 pegam na ideia de um “editor” que lendo essa tal novela, veria nela o potencial suficiente para fazer algum dinheiro. Mais: vê nela tantas possibilidades que exige a Cervantes que lhe aumente a extenção para muitas vezes mais aquilo que o autor já tinha escrito e, para isso, paga-lhe um adiantamento pelo trabalho. Assim, Eloy Cebrián e Francisco Mendonza experimentam na ficção uma explicação para aquilo que na verdade é um enigma: a tal unidade dos primeiros capítulos aos quais se seguem mais umas valentes dezenas de outros capítulos e ainda uma segunda parte da obra publicada dez anos mais tarde.
Por estes e outros motivos que aqui ficam por referir, este livro é absolutamente imperdível para todos aqueles que se deixam fascinar pelo mundo do livro e, sobretudo, pelo Quijote. É brilhante!
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