terça-feira, 22 de janeiro de 2013

À avó

Conheci a minha avó já com o cabelo quase branco. Durante muitos anos usou um «carrapito» que consistia numa trança que depois enrolava e prendia na parte de trás da cabeça com alguns ganchos e uma travessa. Foi assim até ao dia em que, por já ter dificuldades em levantar os braços como sempre fizera para este ritual de arranjar o cabelo todas as manhãs, resolveu cortá-lo. A avó do carrapito foi-se, mas ficou outra e eu gostava dela na mesma.
 
A minha avó tinha uma genica imensa. Trabalhava com gosto e punha amor em tudo o que fazia. Sabia como seria o tempo no dia seguinte só de olhar para o céu. E no Verão, em noites de céu estrelado, apontava-me para o «Caminho de Santiago» e mandava-me pedir desejos às estrelas cadentes. Sentava-se connosco a apanhar o ar fresco das noites de Agosto e conversava. A voz dela sempre me soou calma e o ritmo que dava às suas frases acabavam por me enrolar num soninho bom que me sabia muito bem. No dia seguinte era sempre a primeira a levantar-se. Ouviamo-la andar na cozinha, preparando tudo o que precisava. O dia dela era imenso. Cabia um mundo nas vinte e quatro horas que tinha pela frente, mas pelo meio houve sempre tempo para todos. E bondade. Uma bondade imensa que nunca mais encontrei em ninguém.
 
A minha avó era diferente de todas as pessoas. Quantas vezes foi ela regar as hortas com os pés descalços nos regos que ela própria abria com a sua sachola? E quantas vezes me descalcei também e chapinhei perto dela, invejando interiormente aquela vida de água fresca e de sol? Quantas vezes me deixou mergulhar no tanque onde durante anos lavou parte da roupa de casa? Quantas vezes me deixou usar uma parte da massa do pão para fazer um «bola» pequenina para mim? E quantas vezes me fez a mim e aos outros netos as vontades, passando-nos para a mão todos os objectos que julgávamos necessários para as nossas brincadeiras? Quantas facas nos emprestou ela para que pudéssemos cortar as cordas para fazermos um baloiço? E quantas vezes nos fez ela mesma o baloiço que tanto queríamos? Acabávamos invariavelmente de rabo no chão, já que a corda se partia sempre pelo roçar com o ramo da árvore, mas enquanto isso não acontecia, divertíamo-nos à brava. Ela divertia-se ao ver-nos assim.
 
A minha avó era doce, sábia, cheia de energia e de ternura. Subiu a correr Serra da Marofa com alguns netos pela mão e foi disso que lhe falei na nossa última conversa. No Natal conversei com ela pelo telefone e desejei-lhe muitas coisas boas. Respondeu-me, num fio de voz, que não queria nada, só saúde. Disse-lhe que ainda teria muita e que subiria de novo a serra, comigo pela mão. Não acreditava no que dizia, mas tinha ainda alguma esperança de que melhorasse e de que a pudesse voltar a ver tal como a recordava. Já não a vi, nem voltei a falar com ela. A minha avó despediu-se do mundo no Sábado à tarde, perante duas das pessoas que mais amava. Lembro-me da última vez em que a vi, sem saber que seria a derradeira e quero guardar essa memória. Essa e todas as outras porque com ela só fui feliz. Quero guardar a imagem da mulher pequenina de cabelo branco e rosto rosado, sabedora de tantas coisas que uma vida não chegaria para eu ou outro as aprendermos. Ficará comigo a recordação de uma mãe maravilhosa, de uma avó carinhosa, de uma mulher boa e amada por quem a rodeava.
 
Na despedida, a festa da aldeia parou e muitos dos que a conheceram acabaram a encher a igreja, de tal modo que não foram poucos os que tiveram de ficar na rua. Vimo-la ser sepultada no mesmo sítio onde quase uma década antes deixámos o meu avô. Não sei se foi para o céu porque me custa, agora, a crer que isso exista. Mas sei que a pessoa que estava naquele caixão não era a minha avó. Era alguém que não conheci, que nunca tinha visto e cuja imagem quero esquecer depressa para que só reste a da mulher saudável que foi. A cor amarela, a magreza extrema, o rosto carregado não eram os da avó que conheci. Seriam faces da maldita doença que a levou, mas a minha avó, a avó de quem tenho umas saudades enormes e sem a qual sei que será difícil viver, não era assim. Era bonita. É bonita. Sê-lo-á para sempre na minha memória.
 
Até sempre, avó.
 
 
«Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não se saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.»
 
Excerto do poema «Noutros Lugares», de Jorge de Sena

4 comentários:

  1. Sinto muito pela tua perda. Mas fizeste uma descrição tão bonita que estou certa que a boa imagem que tens vai prevalecer e que, de uma maneira ou de outra, vais tê-la sempre contigo.

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  2. Um bonito texto para uma mulher com um M grande,foi alguém que gostei muito de conhecer, e que apesar de ter convivido pouco com ela, só tenho boas recordações das férias que passámos na casa dela. Vou guardar as recordações da tua avó com bastante carinho e muita saudade. Um beijinho muito grande da popota que está sempre disponível para ti para o que precisares.

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    1. Obrigada, Popota. Era uma mulher fantástica e vai fazer-nos muita falta. Beijinhos.

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