quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Peculiaridades de um leitor II

Leitor que é leitor e que quer ter livros seus e não ler apenas livros emprestados por amigos ou pela biblioteca passa a vida inteira a juntá-los pelas estantes fora, de forma mais ou menos desorganizada e desorientada. Mais ou menos disse eu. Porque, por vezes e ainda que não pareça, existe uma lógica naquilo que vamos comprando. Um livro sugere outros; uma revista levanta questões sobre um tema e corremos a arranjar material sobre ele; um jornal apresenta uma crítica que nos deixa de orelha em pé. Enfim, há várias formas de descobrir novos títulos para acrescentar aos que já temos. E o que se segue é, frequentemente, bastante estranho...

Hoje acordei muito cedo e mudei-me da cama para o escritório. Ao olhar para as estantes, bati o olhinho num romance de Salman Rushdie que me ofereceram no ano passado. Continuei a percorrer as prateleiras com os olhos e, elém desse Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites, vi Os Filhos da Meia Noite, encontrei Shalimar, o Palhaço, o Grimus, O Chão Que Ela Pisa, vi também Luka e o Fogo da Vida, Harum e o Mar de Histórias, encontrei o Oriente, Ocidente e ainda os romances Fúria, O Último Suspiro do Mouro e A Feiticeira de Florença. Nada mau para quem começou a comprar estes livros quando, há uns dois ou três anos, leu no Kindle as memórias do autor, livro intitulado Joseph Anton.

Ora, nessas memórias, que ganham o título através do nome falso adoptado por Salman Rushdie quando teve de viver na clandestinidade de forma a tentar escapar da absurda ameaça de morte que pairava sobre ele devido à fatwa lançada em forma de punição pela publicação de um dos seus livros, percebemos que o romance Versículos Satânicos foi o gatilho que levou a que a sua vida ficasse totalmente virada de pernas para o ar. O livro foi considerado blasfemo e ofensivo para com o Profeta Maomé e, por isso, o líder do Irão lançou sobre o autor uma fatwa para que ele fosse assassinado. Durante anos, mais do que seria imaginável, Salman Rushdie viveu escondido, mudando de casa para casa, sem poder viver uma vida normal, com medo do que lhe pudesse suceder e aos seus. Supreendentemente, escreveu bastante neste tempo. Quando li as suas memórias, fiquei tão entusiasmada com a sua vida e com a capacidade de escrever mesmo na adversidade, de ter grandes ideias mesmo quando confinado a quatro paredes, de não sucumbir à pressão e, sobretudo, de ter escrito uma obra capaz de enfurecer assim alguém, ao ponto de mobilizar outros para a causa «eliminar Salman Rushdie da face da terra», que desatei a comprar os livros dele que me faltavam (na altura só tinha mesmo o famoso Os Filhos da Meia Noite).

E agora chegamos à tal peculiaridade de um leitor que, neste caso, sou eu. Se voltarem à lista de livros do Salman Rushdie que tenho, e que não é propriamente pequena, deparar-se-ão com uma importante e estranha lacuna. Eu gostava de vo-la explicar, gostava muito, mas acho-a tão desmesuradamente ridícula que não há nada que possa justificá-la. A falta do livro mais importante, mais destacado, mais falado de um autor é qualquer coisa de bastante idiota. Mas acontece cá em casa. Enfim, peculiaridades...


3 comentários:

  1. Gosto tanto de livros. Quando vivia na outra casa [bastante maior] tinha uma prateleira de que me orgulhava muito. Agora nesta estão arrumadinhos numa caixa.
    Espero ter uma casa em condições brevemente para metê-los novamente em exposição e alargar a colecção :)

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    1. Eu acho que se alargo muito mais a colecção, saio eu e ficam os livros. Mas agora a sério: as pessoas passam tanto tempo a procurar coisas que lhes decorem as casas e que as tornem aconchegantes e até se esquecem que poucas coisas tornam mais uma casa num lar do que livros. Eles trazem uma sensação de aconchego imensa. Mas atenção: não é só para decorar, é para lê-los, sobretudo. Espero que possas tirá-los da caixa brevemente e dar-lhes um novo espaço à medida deles. :)

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  2. Estou até hoje para perceber o que de tão ofensivo há no livro. Enfim, basta querer, não é?
    Quanto à tua resposta ao comentário anterior, estou de acordo. Nada melhor que o conforto e a beleza dos livros. É exactamente por isso que tenho poucos móveis, as paredes estão reservadas para as estantes :)

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