segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

O lápis azul que agora é preto

Teria eu uns catorze anos quando um colega de escola me emprestou um livro que consistia na autobiografia de um adolescente qualquer (não me perguntem o que fez o autor de especial para escrever uma biografia na adolescência porque não me lembro). Termos como «punheteiro» apareciam a torto e a direito, além de outros de que já nem me recordo. Li o livro e estou viva.

Muito antes disso, li, por vontade própria, o livro Os Filhos da Droga, onde além de descrições sexuais, são muitas as descrições violentas relacionadas com consumo de drogas, mortes por overdose e outros problemas, também eles vividos na adolescência de alguém. Li-o talvez com uns doze anos e ainda ando por cá.

Como estes exemplos, existirão outros. Se puxasse mais pela memória, talvez lá chegasse. Mas já me passaram pelas mãos tantos livros que é impossível lembrar-me de todos. Lembro-me de, novinha, ter lido um policial que tinha, em determinado momento, um conteúdo sexual também muito explícito. Uma vez mais, sobrevivi.

Mas isto tudo a propósito de quê? No sábado passado foi notícia no Expresso a enorme indignação dos encarregados de educação do oitavo ano do Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, devido à obra escolhida para ser lida no âmbito da disciplina de Português. O livro em causa é o romance O nosso reino, de Valter Hugo Mãe. O problema dos pais? Algumas páginas com uma linguagem vulgar. O semanário cita alguns exemplos que reproduzirei aqui: «E a tua tia sabes de que tem cara, de puta, sabes o que é, uma porca que fode com todos os homens e que mesmo que tenha racha para foder deixa que lhe ponha a pila no cu.»; «maricas não é ter medo, isso é medricas, maricas é meter coisas no cu». Antes de avançar, deixem-me dizer-vos que este livro «retrata o dia a dia de uma criança de oito anos numa época marcada pelo final do Estado Novo, pela repressão sexual e religiosa e pelas mudanças da Revolução dos Cravos». A leitura deste livro foi decidida pelo Departamento de Português da escola citada e os professores consideram que a ideia era abordar com os alunos questões de língua, memória, narração e “prepará-los” para autores como Gil Vicente e José Saramago, em anos posteriores». Os pais não estão pelos ajustes, mesmo sabendo que a obra está (ou estava...) nas listas do Plano Nacional de Leitura e que, portanto, a escolha dos professores não saiu de um sonho louco, mas sim de um documento oficial que ajuda a orientar professores e alunos relativamente às leituras a fazer em cada nível de escolaridade.

Contudo, meus caros, o melhor ainda está para vir. Os pais ficaram muito indignados, duas mães dizem que «Os miúdos de 13 anos ainda não têm maturidade para compreender esta linguagem». Dizem que as palavras presentes no livro são «inqualificáveis», «violentas» e «inapropriadas para alunos de 13 e 14 anos». Vai daí e como a escola tomou a admirável decisão de manter a leitura do livro no oitavo ano (eis a diferença entre a escola pública e muitos colégios privados: estes últimos provavelmente ajoelhar-se-iam perante os pais e demitiriam os responsáveis pela escolha da obra), os encarregados de educação tomaram também as suas decisões: «umas proibiram os filhos de ler a obra; outras recorreram à técnica do “lápis azul”. “Eu, na minha liberdade de mãe, estou a fazer como a censura. Risquei as partes polémicas a preto.”».

Eu quero acreditar que estes querubins do oitavo ano nunca viram um filme com conteúdos pouco adequados à sua idade, sejam eles pela violência das imagens ou do vocabulário. Ou que não jogam, por exemplo, GTA. Eu quero acreditar que estamos a falar de meninos sem acesso à internet ou com um bloqueio parental ao nível de um Pentágono. Eu quero acreditar que estes adolescentes do oitavo ano têm uma caixa de areia em casa onde todos os dias enfiam a cabeça para não sonharem com o que de menos cor-de-rosa existe no mundo. Eu quero acreditar, mas não acredito. E quando leio que alguém, que nem sequer é professor, leu o livro antes do filho só para poder riscar a preto tudo o que o menino ou a menina não deve ler, arrepio-me toda. 

Vamos ver: a pensar assim, esta pessoa vai ter de riscar também o Auto da Barca do Inferno e a Ilha dos Amores n’Os Lusíadas. Ora, essa última acção era precisamente uma das que o Estado Novo praticava e que impediu muita gente de ler, nas escolas algumas das passagens mais interessantes e importantes da nossa epopeia. Acredito que um pai ou uma mãe apanhados desprevenidos de repente com um livro com este tipo de vocabulário apanhe um susto. Mas depois deve pensar no assunto e perceber que se TODO um departamento de professores escolhe tal obra e que se ainda por cima esse título está nas listas que legitimam a escolha, então é porque saberão o que estão a fazer. Quem não ensina não sabe (embora toda a gente se julgue um professor em potência, o que é uma enorme prepotência e uma ainda maior estupidez), mas há muitas maneiras de abordar uma obra. Obviamente, a questão da linguagem tem de ser discutida, mas de um ponto de vista didáctico. Talvez seja bom começar por perceber por que motivo falará a personagem daquela maneira. Quais as suas características que justificam aquelas palavras e as ideias que veiculam? O que pretendeu o autor mostrar com este aspecto da linguagem, relacionando-a com todo o conteúdo da obra? Mas não: é muito mais fácil proibir a leitura ou, melhor ainda, permitir que o filho leia o livro, embora retalhado pelos cortes feitos a tinta preta. 

Não sei em que mundo os pais vivem. Mas o mundo que eu conheço enquanto professora (e sempre do ensino privado, ainda por cima), mostra-me que os alunos do oitavo ano conhecem este vocabulário e algum ainda pior. Mostra-me que dominam a internet como mestres e que, tendo tempo para isso, vêem nela o que devem e o que não devem. Mostra-me que, muitas vezes, falam com os professores e contam que foram com os pais ver este ou aquele filme que não é, de todo, para a sua idade. Não indo mais longe: tive muitos alunos que foram ao cinema ver o filme Deadpool, que era para maiores de dezasseis. Ora eles eram alunos do sétimo ano, estando por isso muito, mas muito longe da idade necessária para ver o filme. Quem os levou ao cinema? Os pais. Eu vi o filme, sei o que por lá se diz e faz. Mas claro que os alunos do oitavo ano do Liceu Pedro Nunes não vêem este tipo de coisas.

Em resposta à polémica, o escritor Valer Hugo Mãe diz, com alguma graça, que não se lembra de o seu livro ser «assim tão escabroso e tão explícito» e que não lhe ocorre «ter usado uma perversão tão grande que represente a morte do Pai Natal». 

Mais do que a linguagem, que é perfeitamente tratável na sala de aula e que não representa todo o livro, sendo apenas um dos elementos que o constitui, choca-me a reacção das famílias e, mais ainda, este retalhar da obra literária para que o adolescente a possa ler sem as partes que a mãe considera chocantes. Porém, onde pode parar a caneta preta? Se a escolha dos professores pode ser posta em causa pelos pais, quem põe limites ao que uma mãe censura ou não? Que leitura, que obra sobra depois de a caneta preta actuar? Onde está a confiança na escola e na capacidade de os docentes encontrarem uma forma de abordar o texto sem dar todo o ênfase do mundo à questão da linguagem? Não conseguiram estes pais exactamente aquilo que não queriam: dar todo o destaque às palavras menos bonitas e às ideias que elas constroem? Não terão sido os encarregados de educação com esta desproporcionada indignação os responsáveis pela redução de uma obra literária a duas páginas (segundo o Expresso) em que as palavras descrevem ou relatam algo que existe, mas que não costumamos mencionar assim? Eu acho que aqui se aplica bem aquela frase que diz «O que eu temo eu crio.» e, mesmo sem querer, estes pais conseguiram que, provavelmente os meninos agora só queiram mesmo saber o que diz nestas páginas do livro. Que ignorem o resto. Mas mais ainda, gostava de saber se o aluno cujo livro deve estar riscado a preto, não correu já a pedir o livro de um colega emprestado no intervalo para poder ler, avidamente, aquilo que tanta polémica gerou e que a mãe, tão candidamente, riscou.

9 comentários:

  1. Acabei de ler no Expresso que o livro foi incluido no Plano Nacional de Leitura por "lapso informático". (Em relação à indignação dos pais acho só ridículo, apesar de ter dúvidas se alunos de 13 anos tem maturidade na leitura para acompanhar - e realmente ler - um livro do valter hugo mãe, a par desse vernáculo e de muito pior tenho a certeza que estão!)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sempre que há reclamações, o PNL diz que o título estava na lista por lapso. Ou alguém não faz o seu trabalho devidamente ou é uma forma de escapar ao problema. Quanto à maturidade, se vai ser abordado pelos professores, os alunos chegam lá. Eu, no meu estágio, pus alunos do 10.° ano a lerem o Quixote sem ser adaptado e eles não só conseguiram como ainda gostaram. Os professores sabem motivar para a leitura e sabem abordar as obras (bem, nem todos, mas é como em todas as profissões). Ainda que nem todos os alunos estejam para aí virados, claro. Mas é trabalho da escola apresentar livros com qualidade literária aos alunos. Parece-me feio que a saída para isto agora seja dizer-se que foi um lapso. Mais um.

      Eliminar
    2. Talvez tenhas razão, eu compreendo o que queres dizer, tive alguns professores que me teriam conseguido pôr a ler de bom grado o Lobo Antunes, infelizmente nenhum deles era de português. :)

      Eliminar
    3. É uma questão de sorte. Os professores sabem o que têm a fazer. Por vezes não o fazem, mas muitíssimas vezes são mesmo os alunos que não estão para aí virados. E depois, a maturidade deles tem mesmo vindo a decrescer muito. Um miúdo de quinze anos hoje chega a parecer um de doze há uma década. Contudo, a escola, podendo adequar-se em certa medida, não pode desistir e acompanhar simplesmente esta regressão em que temos bebés nas salas de aula até cada vez mais tarde. Importa puxar por eles, ser exigente. Eles podem não ter a maturidade, mas se não começarmos a aumentar o grau de dificuldade, também nunca a terão.

      Tive muita sorte com três das minhas professoras de Português em momentos fundamentais da escolaridade: 5.° ano, 9.° ano e todo o ensino secundário. Souberam fazer-me gostar muito daquilo. E olha que, ironicamente, não achava piadinha nenhuma à disciplina (achava-a demasiado fácil). Ahahah! Ninguém acredita quando conto isto.

      Eliminar
    4. Exacto, era mais ou menos isso que eu achava. Demasiado fácil. (agora dá-me vontade de rir porque acho que nem sequer escrevo nada bem)
      Mas à época, como não era propriamente burra, ir às aulas, estar atenta e não fazer nenhum em casa, era suficiente para chegar aos exames e andar pelos 18.

      Eliminar
  2. Se esses pais ouvissem a linguagem dos filhinhos de 13 anos upa, upa. Provavelmente culpariam a escola e os professores.
    À semelhança do que tu própria dizes também eu não morri por ter lido certos livros, nomeadamente "Papillon" aos 11 anos. E para além de sexo havia menção a drogas no ânus.
    Felizmente os meus pais nunca me vedaram o acesso aos livros.
    Estamos a criar anormaizinhos, pesculpem-me os pais. Tudo tem que ser higienizado, nem que paara isso tenhamos que mudar a História.
    O PNL é cobarde ou algo incompetente.
    Já agora, tantos escritores nacionais bons e recomendam Mãe? Não seria Afonso Cruz mais benéfico não só mas também pela criatividade e sensibilidade que mostra nos seus livros?
    Enfim, estamos a chegar a pontos tão ridículos...

    ResponderEliminar
  3. Mesmo a propósito :D
    https://www.youtube.com/watch?v=Llxi9mnTZzU

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ora aí está. Enquanto os pais continuarem a achar que os filhos são, coitadinhos, uns ingénuos, eles vão levando a vidinha. Grande Bruno Nogueira. :)

      Eliminar
  4. Também levei um susto ao ler essas passagens, nas redes sociais, mas a verdade é que, infelizmente, muitos desses moços, que já não são crianças, ouvem essa linguagem diariamente, quer na escola, no recreio com os colegas, como em casa. E não me digam que é apenas coisa de crianças/adolescentes que vivem em zona e em famílias problemáticas.
    Se fosse um filho meu, ao invés de censurar (que coisa horrenda, a mãe ainda teve a lata de dizer que aquilo era como no Estado Novo, achando que isso a podia desculpabilizar), preferia falar com ele/ela e explicar-lhe alguma coisa, tentar perceber o que achava daquela linguagem, porque a verdade é que não é fácil abordá-la. Mas nunca censurar, isso não.
    A questão aqui é que os pais (e eu tenho experiência nisso, ainda que de "outros carnavais"), acham-se os donos dos filhos e que podem tudo em relação a eles. São pais, mandam e pronto. Aos filhos cabe obedecer, e aos "de fora" calar.
    ****

    ResponderEliminar