domingo, 8 de novembro de 2015

Literatura

Geralmente só vos falo dos livros quando já acabei de os ler ou quando, por alguma razão, desisto deles. Todavia, hoje vou abrir uma excepção para falar-vos do Infância, Adolescência, Juventude, de Tólstoi. 

Até hoje, foram poucos os livros que me fizeram erguer a cabeça das suas páginas e pensar “Isto sim é literatura.”. Excertos, frases, palavras que colocadas no sítio certo criam perfeição. No fundo como com uma música bonita e bem construída: a nota certa no local ideal criam magia, qualquer coisa que nem parece humana de tão perfeita que é. Vivi essa experiência com alguns livros e estou a repeti-la com este livro do russo Tólstoi. As coisas mais simples, os temas mais normais e que fazem parte da vida de qualquer ser humano, o autor consegue mostrá-los de uma forma em que nunca tínhamos pensado. Ou, por outro lado, consegue descrever tudo isso indo ao encontro de algo em que já havíamos pensado, mas nunca de forma tão poética, tão literária, tão límpida. O modo como usa as palavras é absolutamente notável e explica perfeitamente por que motivo é um clássico de outros tempos que permanecerá em todos os tempos. Mas, para que se perceba o que quero realmente dizer-vos, vou dar-vos um exemplo que foi, precisamente, o primeiro que me fez ver tudo isto neste livro de Tólstoi.

Tudo acontece porque o irmão mais velho do narrador, de repente, tem um daqueles rompantes que nos dão alguma vez na vida e que nos fazem achar que tudo o que seja brincadeira é ridículo. Estamos a falar de crianças que caminham para a adolescência e este irmão mais crescido já parece ter lá um pezinho. O problema é que, subitamente, e num espaço que convidava mesmo à brincadeira,  este rapaz ridiculariza os jogos que outrora lhe haviam dado tanto prazer, a si e aos irmãos. Vai, ainda, boicotar a brincadeira das outras crianças, o que enfurecerá o narrador que, por isso mesmo, reflectirá sobre o que é ‘brincar’ e a sua importância na vida das pessoas. Deixo-vos um excerto retirado da edição da Relógio D’Água, e que está na página 40.

“- A sério, não me apetece... é um tédio! - disse Volódia, espreguiçando-se e, ao mesmo tempo, sorrindo vaidosamente.

- Seria melhor ficarmos em casa, já que ninguém quer brincar -  pronunciou Liúbotchka já com choro na voz.

Era uma grande chorona.

- Está bem, vamos; mas não chores, por favor, detesto isso!

A condescendência de Volódia deu-nos muito pouco prazer; pelo contrário, o seu ar preguiçoso e entediado destruía todo o encanto da brincadeira. Quando nos sentámos no chão e, imaginando que estávamos a ir de barco para pescar, começámos a remar com todas as forças, Volódia ficou de braços cruzados numa posição que não tinha nada que ver com a posição de um pescador. Fiz-lhe esta observação; mas respondeu que, por mais que abanássemos as mãos, não ganharíamos nem perderíamos nada e não iríamos longe. Não deixei de concordar com ele. Quando, imaginando que ia à caça, entrei na floresta com um pau ao ombro, Volódia deitou-se no chão de costas, com as mãos atrás da nuca, e disse que fizesse de conta que ele próprio também ia. Essa atitude e essas palavras, esfriando o nosso desejo de brincar, eram extremamente desagradáveis, ainda por cima porque era impossível não concordar, no fundo da alma, que Volódia estava a ser sensato.

Também sei que é impossível não só matar uma ave, mas sequer dar um tiro com um pau. É apenas uma brincadeira, um jogo. Se raciocinarmos assim, também não será possível viajarmos sentados em cadeiras; ao mesmo tempo, acho que Volódia se lembrava bem como, nas longas tardes invernais, cobríamos a poltrona com xailes, fazíamos dela uma caleche, um de nós era o cocheiro, outro lacaio, as meninas sentavam-se no meio, três cadeiras eram três cavalos atrelados - e lá íamos de viagem. E quantas aventuras aconteciam pelo caminho! E que animadas se tornavam as tardes invernais, passando num instante! Se raciocinarmos com essa sensatez, não haverá brincadeira nenhuma. Mas se não houver brincadeira, o que nos resta então?...”


Nota: A imagem saiu da página da Wook.

1 comentário:

  1. Também já li. É uma tremenda pérola.
    (Como quase tudo o que escreveu)

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