sexta-feira, 9 de março de 2012

A Menina Sugere Isto III

Hoje a menina sugere um livro que parte de uma coisa tão banal quanto um nariz para criar uma história que é, também, uma reflexão sobre o modo como nos vemos e como nos vêem. Um, Ninguém e Cem Mil, de Luigi Pirandello, foi um livro que me arrancou umas valentes gargalhadas e que conseguiu deixar-me a pensar sobre algumas questões interessantes que, uma vez por outra, acabam por assomar à nossa cabeça.

A personagem principal chama-se Vitangelo Moscarda (mas a mulher chama-o carinhosamente de "Gengè") e tem vinte e oito anos quando descobre, com a ajuda da esposa, que o seu nariz está ligeiramente torto, pendendo para o lado direito. Uma descoberta rotineira, pensará o leitor que a dada altura da sua vida terá também, com certeza, constatado alguma assimetria no próprio corpo. Contudo, Gengè não consegue ver a realidade com esta ligeireza e o facto de ter o nariz meio torto leva-o a um tal estado de obsessão que os seus comportamentos se tornam estranhos. Aliás, a partir daquele momento em que, olhando o espelho, percebe que o nariz pende um pouco para o lado direito, entra num caminho que não o levará a bom porto (pensa o leitor, que eu não vou contar como acaba). Aos poucos dedicar-se-á a uma reflexão que acompanha a sua própria história e que tem como centro aquilo que somos para os outros. Ou seja: Gengè começa a pensar que talvez aquele seu defeito físico já tivesse sido notado pelos outros sem que ele soubesse. E daí a chegar à conclusão de que aquilo que nós achamos que somos não é o que somos na realidade nem aquilo que os outros vêem, vai um pulinho. A dada altura, e em consequência de toda esta obsessão maluca que não o deixa parar de pensar no defeito que sempre ostentou sem disso se aperceber, conclui que não somos apenas um, mas vários: seremos tantos quantas as imagens que de nós tiverem os outros e nós mesmos.

É, portanto, uma boa leitura. Diverti-me imenso a ler este livro que, com uma ironia enorme, nos deixa a pensar sobre o desconhecimento que temos daquilo que somos e das imagens que projectamos; sobre a insegurança que podemos sentir quando disso temos consciência e sobre o quanto uma obsessão tão simples pode levar-nos a um estado de consciência tal que chega a roçar o absurdo. No fundo, o perceber de um pequeno defeito expõe linhas de reflexão que a todos já nos passaram pela ideia, embora nós, ao contrário do pobre Gengè, não tenhamos perdido anos de vida a pensar nelas. Terminamos o livro com o pensamento de que nem é assim tão mau ter o nível de insconsciência que frequentemente temos sobre aquilo que projectamos para os outros, já que de contrário poderíamos ser levados a muitíssimas inseguranças, como sucede com a personagem.

Este foi o último livro publicado por Luigi Pirandello, Nobel da Literatura em 1934, e, citando o texto da contracapa da edição da Cavalo de Ferro, «é considerado pela crítica como um dos pontos mais altos de toda a sua obra, onde o autor resume e aprofunda todo o seu universo, que marcou de forma original a literatura do século XX». Deixo-vos, como de costume, os seus primeiros parágrafos para tentar aguçar-vos o apetite:

« - Que estás a fazer? - perguntou-me minha mulher, ao ver que me demorava inusitadamente diante do espelho.
  - Nada - respondi-lhe -, estou a olhar para o meu nariz, para dentro desta narina. Quando carrego sinto uma dorzinha.
Minha mulher sorriu e disse:
  - Julgava que estavas a ver para que lado te pende.
Voltei-me, como um cão a quem tivessem pisado a cauda:
  - Pende? A mim? O nariz?
E minha mulher, placidamente:
  - Claro que sim, querido. Olha bem para ele: pende-te para a direita.

Tinha vinte e oito anos e até então sempre considerara o meu nariz, se não propriamente bonito, pelo menos muito decente, tal como todas as outras partes da minha pessoa. Pelo que me fora fácil admitir e alimentar a ideia que habitualmente admitem e alimentam todos os que não tiveram a infelicidade de lhes calhar em sorte um corpo disforme: que só um tolo se envaidece das suas funções. Por isso, a descoberta súbita e inesperada daquele defeito irritou-me como um castigo imerecido.»


Pirandello, Luigi (2007). Um, Ninguém e Cem Mil. Lisboa: Cavalo de Ferro Editores.

Sem comentários:

Enviar um comentário